5/7/2025

Cerveja: de motor silencioso da economia a símbolo de identidade e inovação

Num país onde o vinho domina o imaginário gastronómico, a cerveja portuguesa tem vindo a conquistar espaço e peso na economia, na cultura e no consumo. Com um valor anual de 2,6 mil milhões de euros, quase 98 mil empregos diretos e indiretos e um mercado cada vez mais diversificado, o sector enfrenta desafios fiscais, agrícolas e climáticos, mas aposta em inovação, sustentabilidade e na valorização das cervejas artesanais e sem álcool para moldar o futuro. Nas linhas que se seguem, percorremos três perspetivas, com a voz direta dos protagonistas. Da visão macro e estruturada da Cervejeiros de Portugal, ao olhar próximo e experimental de duas referências artesanais — Musa e Praxis — e à abordagem comercial e adaptativa do Intermarché com a sua marca Kingsbrau, procuramos traçar o retrato completo de um sector que, mais do que uma bebida, é reflexo de um país em mudança.

Num país onde o vinho costuma ocupar o centro das atenções no discurso gastronómico e cultural, a cerveja tem vindo a afirmar-se como um ativo económico, social e identitário de peso crescente. Não é apenas um copo fresco na esplanada num dia quente: é uma indústria que representa 1,53% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional — cerca de 2,6 mil milhões de euros — e que garante aproximadamente 98 mil postos de trabalho diretos e indiretos. Em 2022, o sector contribuiu com mais de mil milhões de euros em impostos, consolidando-se como um pilar relevante não apenas para o consumo, mas também para as finanças públicas.

Apesar desta expressão, Francisco Gírio, Secretário-geral da Cervejeiros de Portugal, considera que “a importância do sector cervejeiro não tem sido devidamente reconhecida pelas entidades governamentais. Há muito que se tem verificado um tratamento fiscal desigual e injustificado, em comparação com outras bebidas alcoólicas”. Esta perceção é partilhada por quem, no terreno, sente as pressões de um mercado globalizado, a exigência da inovação constante e a necessidade de equilibrar tradição e modernidade.

Portugal é também um caso curioso no contexto europeu: foi o único país do continente a recuperar rapidamente os níveis de vendas pré-pandemia e até a superá-los. Uma façanha que se explica por múltiplos fatores: da forte cultura de convívio nacional ao papel central do fora de casa como palco de consumo, passando por uma indústria que soube adaptar-se ao apetite por cervejas de baixo teor alcoólico e sem álcool.

Este retrato, contudo, é apenas a superfície de um mercado em transformação. Por baixo da espuma, convivem realidades distintas: a robustez industrial dos grandes fabricantes, o dinamismo criativo das microcervejeiras artesanais e a estratégia pragmática das marcas próprias no retalho alimentar. Cada uma destas dimensões enfrenta os seus próprios desafios — fiscais, logísticos e de perceção de valor —, mas todas estão ligadas por uma ambição comum: reforçar o papel da cerveja na economia, na cultura e no quotidiano dos portugueses.

Motor silencioso da economia

A indústria cervejeira portuguesa é, há muito, um dos motores silenciosos da economia nacional. Gera riqueza e emprego e contribui para as receitas fiscais de forma significativa, mas, segundo Francisco Gírio, a sua importância não tem sido devidamente reconhecida. O ponto central da crítica reside no tratamento fiscal desigual face a outras bebidas alcoólicas. O congelamento do Imposto Especial sobre o Álcool e as Bebidas Alcoólicas (IABA) no último Orçamento de Estado foi um alívio temporário, mas o sector reclama por estabilidade a longo prazo.

“Consideramos fundamental a manutenção de um quadro fiscal estável e duradouro, como acontece em Espanha, que reconheça a cerveja enquanto bebida natural, fermentada e de baixo teor alcoólico”, sublinha o diretor geral da Cervejeiros de Portugal. Que acrescenta, aliás, que, numa ótica de promoção de um consumo moderado e responsável, “seria natural que se procurasse incentivar bebidas de baixo teor alcoólico e sem álcool através de boas políticas fiscais. Com um tratamento fiscal mais favorável, o Estado beneficiará sempre e arrecadará mais receita fiscal enquanto incentiva à inovação no sector cervejeiro e garante que este se mantenha como motor de desenvolvimento económico e social”.

Tanto mais que o sector se tem mostrado resiliente, não obstante os desafios. Portugal destacou-se como o único país europeu a recuperar e ultrapassar os níveis de consumo de cerveja pré-pandemia. Em 2023, o sector cresceu 3% e superou os 600 milhões de litros vendidos, fasquia que não se alcançava há mais de uma década. Para Francisco Gírio, este feito tem explicação na “forte cultura de convívio que existe em Portugal e na qual a cerveja desempenha um papel importante” e na reabertura de bares e restaurantes, os espaços “primordiais de consumo” da bebida.

Embora o comportamento do consumidor não tenha sofrido uma mudança radical, a pandemia acelerou tendências já visíveis, como a valorização de um estilo de vida saudável e o consumo moderado. A procura por cervejas de baixo teor alcoólico e sem álcool ganhou força e as empresas responderam com inovação.

O desafio da produção nacional

Nesta resposta com inovação, outros desafios se colocam à produção nacional: as matérias-primas. Se a cerveja é feita essencialmente de água, malte, lúpulo e levedura, a sua ligação à agricultura é incontornável. Em 2024, as cervejeiras portuguesas consumiram 114 mil toneladas de cevada, mas apenas 14% teve origem nacional. No caso do lúpulo, a produção doméstica cobriu cerca de 15% da procura.

Esta dependência preocupa o sector, que procura soluções. Um “passo concreto” foi a integração da Cervejeiros de Portugal no programa +CEREAIS, um memorando de entendimento com associações agrícolas, alimentares e de distribuição para reforçar a fileira de produção de cevada nacional. “Este memorando foi assinado a 9 de abril de 2025, um dia antes da nossa assembleia geral, na qual o ministro da Agricultura, José Manuel Fernandes, reconheceu não só as carências, mas também a necessidade de diálogo. Os Cervejeiros de Portugal cá estarão para participar positivamente nesse diálogo. Acreditamos que boas políticas públicas poderão passar por medidas já conhecidas e experimentadas como a subvenção por hectare, o apoio à instalação de jovens agricultores que combatam a ‘desertificação’ desta área de atividade ou mesmo os contratos de cultivo a longo prazo, que ofereçam previsibilidade a quem cultiva e, com isso, mais segurança para investir”, sustenta Francisco Gírio.

A indústria tem também feito progressos significativos ao nível da sustentabilidade, nomeadamente, na redução do consumo de água por litro de cerveja e na transição para fontes energéticas renováveis, como a solar e o aproveitamento de calor residual da produção. “O sector cervejeiro é um exemplo de boas práticas a nível nacional”, afirma categoricamente Francisco Gírio, lembrando também os investimentos na redução do peso das embalagens.

E embora os pequenos produtores tenham menos recursos para implementar soluções dispendiosas, também eles procuram integrar práticas sustentáveis, recorrendo à reutilização de subprodutos, embalagens recicláveis e medidas de eficiência energética.

Para além do impacto ambiental, o sector tem um papel ativo no desenvolvimento das comunidades. “Os associados da Cervejeiros de Portugal geram, em conjunto, cerca de 98 mil empregos, diretos e na fileira”, nota o diretor geral.

Por outro lado, a procura de matérias-primas estimula a economia rural e há um investimento contínuo em campanhas de consumo responsável. Exemplo disso foi a campanha em parceria com a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária e a Prevenção Rodoviária Portuguesa, que alertou para o uso seguro de trotinetes. “A par disso, e reconhecendo a importância de uma abordagem baseada na ciência, estabelecemos uma colaboração com nutricionistas para desenvolver conteúdos que visam esclarecer o papel da cerveja, incluindo as opções sem álcool, no contexto de um estilo de vida equilibrado. O objetivo é desmitificar alguns conceitos e fornecer dados objetivos sobre as diversas opções disponíveis no mercado”, acrescenta o responsável.

Cultura cervejeira em evolução

Em Portugal, o consumo per capita de cerveja ronda os 60 litros anuais, sendo 67% realizado fora de casa. Esta característica social distingue Portugal e influencia a forma como a bebida é percecionada. “A cultura cervejeira em Portugal está a atravessar um período de notável evolução e sofisticação”, afirma Francisco Gírio, destacando a diversificação “sem precedentes” de estilos, com muitas variedades que “educam e desafiam o paladar do consumidor”.

A este desenvolvimento não é alheio o contributo do movimento artesanal, com o surgimento de várias microcervejeiras que oferecem produtos de autor, com identidade e qualidade, “elevando a perceção da cerveja de uma bebida comum para uma bebida premium, de valor acrescentado”.

Esta transformação tem levado a uma clara alteração no perfil do consumidor português, que se mostra cada vez mais curioso e informado e que procura novas experiências, sabores e a história por detrás de cada cerveja, o que reflete uma valorização crescente da bebida em si. A oferta diversificada — IPAs, Weiss, Porter — em grandes superfícies era impensável há alguns anos e é hoje uma realidade que desafia o consumidor e estimula a experimentação.

O sector também investe em linhas de produção adaptadas a cervejas sem álcool e o consumidor responde. Ou o inverso: a procura estimula o investimento. Certo é que existe hoje uma geração de consumidores que não só valoriza um estilo de vida mais equilibrado, como bebe, de facto, menos álcool. “As opções de baixo teor ou sem álcool são, por isso, democráticas, permitindo que mais pessoas desfrutem do sabor e da experiência da cerveja em diferentes ocasiões sem que isso entre em conflito com o seu estilo de vida. Importa também realçar que a disponibilização deste tipo de cervejas implica investimentos significativos na alteração das linhas de produção das empresas. E é precisamente por esse motivo que a Cervejeiros de Portugal, enquanto representante do sector, tem vindo a apelar para a criação das já referidas políticas fiscais que incentivem a chegada destas bebidas ao mercado. Para que mais marcas, incluindo as artesanais, possam dar resposta a esta tendência de consumo”, defende.

Até porque a capilaridade da rede de microcervejeiras — mais de 100 no país — reforça a proximidade ao consumidor e contribui para a diversificação da oferta. Hoje, existem microcervejeiras ou produções artesanais em todos os distritos de Portugal Continental. Segundo Francisco Gírio, estes negócios têm desempenhado um papel “crucial” na diversificação da oferta e na educação do paladar do consumidor português e, pelo facto de serem pequenos, também possuem a flexibilidade necessária para “arriscar e apostar em estilos menos conhecidos”, impulsionando a experimentação e a variedade no mercado.

A espuma do futuro

Não é, por isso, de estranhar que o futuro passe pela expansão das cervejas sem álcool e artesanais, pelo turismo cervejeiro e pela exportação orientada para mercados de maior valor. O diretor geral da Cervejeiros de Portugal recorda que a cerveja portuguesa tem uma posição muito sólida, com a produção nacional a satisfazer a esmagadora maioria do consumo interno, o que demonstra a forte ligação e preferência do consumidor português pelas marcas nacionais.

Uma robustez que se estende à Europa, onde Portugal é responsável por cerca de 2% de toda a cerveja produzida na União Europeia, “feito que reflete a nossa qualidade e capacidade”. Embora a presença de marcas importadas seja natural num mercado aberto, a estratégia para afirmar o valor do produto nacional passa por, internamente, “reforçar a cerveja como parte integrante da cultura e dos momentos de convívio” e, externamente, “capitalizar a excelente imagem de Portugal para posicionar a nossa cerveja como um produto de excelência e inovação, capaz de competir nos mercados mais exigentes”.

Entre os obstáculos, destacam-se a pressão dos custos de produção, nomeadamente matérias-primas e energia, as alterações climáticas e a carga fiscal sobre a categoria. “Esperamos ser um sector líder em economia circular, com maior percentagem de matérias-primas nacionais incorporadas e embalagens predominantemente reutilizáveis”, projeta Francisco Gírio. “Estamos convictos que a inovação continuará a impulsionar novos produtos, consolidando a cerveja como uma bebida versátil e socialmente relevante”.

A indústria cervejeira em Portugal mudou nos últimos 15 anos. No passado centralizada em dois grandes produtores, é hoje um sector umbilicalmente ligado às comunidades locais, presente em todas as regiões nacionais e abrindo ao consumidor uma opção mais diversificada. A cerveja é hoje um elemento central da cultura de convívio e socialização, parte integrante da gastronomia e dos momentos de partilha, enquadrada num estilo de vida equilibrado. “Tal como o vinho, a cerveja possui hoje uma dimensão cultural e ambiental profunda que merece ser mais reconhecida pelos portugueses”, conclui.

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